O livro, da autoria da historiadora Maria Teresa Caetano e de Joaquim Leite, está editado e disponível para consulta na Revista Tritão, revista de História, Arte e Património da CMS.

Arrobe, uma compota de Colares perdida nos séculos. 

 

Aqui por Colares, depois a vindima quando o mosto fervilha até transformar-se no vinho que aguardamos, tenho o prazer de trazer à vossa atenção o Arrobe, uma compota tradicional destas terras de vinhas, as mais antigas em permanente actividade porque, como sabem, a filoxera  no século XIX não era mineira e não conseguiu chegar às raízes da cepa do Ramisco, plantado no barro abaixo do chão de areia, muitas vezes a alguns metros de profundidade.

A origem do termo é muito antiga. Segundo que está inscrito no livro " Vestigios da lingoa arabica em Portugal ou,Lexicon etymologico da Lingoa Moura" de  João de Sousa e Frei José de Santo António, arrobe ou arrobbe vem do pérsico robb, e designava o mosto do vinho apurado ao fogo e que, na língua arábica  significava " a quarta parte" ( robén ).

 

Vem esta recordação a propósito de na Festa em Honra da Nossa Senhora da Graça, que teve lugar  sua 246ª comemoração contínua há três semanas, o amigo José Corvo ter procurado quem ainda saberia fazer o Arrobe, compota muita antiga para a qual ela forneceria o mosto das seu vinho. Encontrou na Senhora Lurdes a sabedoria que se temia perdida.

O arrobe é uma compota que é obtida através da concentração ao lume do mosto da uva de até ficar reduzido ao terço do seu volume inicial. Este arrobe substitui o açúcar corrente, pelo que ao juntar-se com frutos cozidos, faz a ligação perfeita para o sabor e a boa conservação da compota.

A receita que oralmente me transmitiu tem como ingredientes o mosto da Uva Ramisco, a Pêra Parda e a Maçã Ripenau, ambas frutos típicos de Colares já praticamente em extinção. Disse-me a Senhora       que o uso destes frutos era natural. Ambas estão boas para colher nesta altura do ano, a Pera Parda é difícil de comer crua por ser muito rija, e a Maçã Ripenau,apesar de muito saborosa, é de tamanho pequeno, e portanto sem valor comercial nestes tempos de estandardização europeia dos formatos frutícolas ( porque com o sabor não se preocupam eles, a fruta à venda hoje é toda colhida verde das árvores ). A utilização destes frutos no Arrobe faz parte da tradição antiga de Colares. Mas, por outras terras, ou mesmo nesta em caso de carência , o Arrobe pode ser feito com as frutas que desejarem e tiverem à mão ( Marmelo, Maçã, Abóbora-Menina, Pêra, Pêro ou Batata-Doce ).

 

Preparação

Ferver o sumo de uva (mosto) até reduzir para metade. Juntar as frutas, descascadas e cortadas em bocadinhos, em quantidade suficiente para perfazer o volume do mosto. Levar ao lume e deixar ferver até obter menos de metade da porção, obtendo uma pasta grossa. Enquanto o doce ferve, para que fique transparente, retire a espuma que se vai formando com a ajuda de uma escumadeira. Deite o arrobe numa tigela de barro e deixe solidificar. Cobre-se com papel vegetal embebido em aguardente.

Nota: e, curiosamente, tal como refere a etimologia árabe e é uso da receita centenar, o mosto que faz o arrobe fica-se pela quarta parte.

Pêra Parda ( ou Codorno ), receita tradicional de uma pêra em extinção. 

 
 

Quando chega a altura das vindimas, esta espécie de pereiras em vias de extinção, estão carregadas com esta qualidade de pêra tardia, que é bastante rija.

Apesar de invulgar, já a Infanta D. Maria de Portugal, no seu “Livro de Cozinha” (1536 ) referia uma receita com esta variedade de pêra no ”Caderno das coisas de conserva” do mesmo livro.

É uma variedade de pêra típica do concelho de Sintra , sobretudo da zona de Colares, São João de Lampas, Pêro Pinheiro e Mercês. Aliás, podemos encontrar estas pêras deliciosas nas festas anuais das Mercês e há quem lhes chame " pêras das Mercês" ( Feira das Mercês, uma festa popular muito antiga dedicada ao culto do Divino Espírito Santo, realiza-se nas duas últimas semanas de Outubro, numa quinta que foi casa do Marquês de Pombal na zona saloia, entre Rio de Mouro e o Algueirão ).

A Receita Antiga, tal como me contou o Senhor António Augusto de Almoçageme, também é típica da altura das vindimas, leva pêras pardas, pau de canela, água, um pouco de erva – doce ( há quem não ponha ) e açúcar.

Lavam-se as pêras colocam-se numa assadeira de barro. Cobrem-se com água acima das pêras, junta-se o açúcar, o pau de canela e, em querendo, a erva - doce. Colocam-se no borralho de um forno de lenha e deixam-se cozer lentamente ao longo de várias horas, escumando-as quando necessário. Quando as sentir cozidas espetando um palito, estão prontas.

Deixam-se arrefecer, colocam-se em cesto forrado e coberto com folha de videira (lembrem-se que estamos em época de vindimas ) e . . .   façam o favor de ser felizes ( como o foi a minha mãe, que tem 91 anos, quando a levei à Festa da Nossa Senhora da Graça, até os olhos sorriram quando se lembrou que a minha avó fazia estas pêras pardas para ela quando era  pequena ).

 

Gastronomia do Litoral Sintrense ( Colares e São João de Lampas ) 

 
 
 

Durante a Idade Média, já existem referências de que o peixe de Cascais era carregado para abastecer vários locais do Reino e, muito possivelmente, do exterior, embora neste último caso apenas se confirme um local: Ceuta ( Cascais tinha uma alcaidaria de mar pelo menos desde 1282 ).. As provisões eram constituídas por sardinhas – a espécie que ganha maior relevância na documentação preservada –, pescadas, congros e polvos. Posteriormente, o foral de Cascais (1514) refere ainda a existência de santolas, lagostas e outros tipos de marisco.

A fama do peixe de Cascais era tal que o mesmo chegou a ser elogiado pelo autor da História do Reino do Congo:

“Tem os rios, e crião em si grande quantidade de peixe do de Portugal: barbos, picões, bordalos, pardelhas, saramugas, esquilhões, peixe que se dá aos doentes, angolas, e outros muitos mui estranhos dos de cá; no mar corvinas, sardinhas, pescadas, mas não tão boas como as de Cascaes” (História do Reino do Congo (Ms. 8080 da Biblioteca Nacional de Lisboa). Pref. e notas de António Brásio, Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1969).

A actividade de pesca no litoral sintrense não pode dissociar-se daquela em que existe na área em que se integra e das condições naturais de costa que proporcionavam ( e proporcionam ) ancoradouros naturais, Cascais e Ericeira, ambas no limite sul e norte da área geográfica sintrense. No foral de Ericeira ( 1229 ) já se menciona a pesca e as quotas que os pescadores podiam guardar para eles.

Assim, a gastronomia com produtos do mar é fortemente influenciada por aqueles dois portos de pesca e das práticas de consumo que aí se geraram. Aliás, esta gastronomia tão localizada, ganhou o epíteto de “jagoz”, nome que tem origem na Ericeira. Hoje, no litoral sintrense, devido a poder dispor-se de produtos de mar de pesca artesanal individual, o que é mais solicitado são os mariscos de costa ( percebes, mexilhão ),  peixe de linha do dia para grelhar ( sargo, robalo, dourada e afins )  e peixe para assar ( garoupa,  goraz, pargo, corvina, a que se junta o polvo). Outros peixes e mariscos entretanto quase desapareceram ( santola, caranguejo/navalheira, santiagos/bruxas, lagosta, linguado, anchova, tunídeos).

Existem diversas receitas que foram ( e algumas continuam a ser ) apanágio dos hábitos locais. Recordo a Caldeirada de Abrótea e Caboz, as Migas à Pescador, os Mexilhões na Grelha ou Salteados, a Massada de Sargos, a Caldeirada de Peixe da Costa, a Feijoada de Polvo, o Arroz de Sardinhas, a Cavala Salgada à Saloia ( Luís Pontes, Outras Comidas ), o Atum de Barrica e a Lagosta Suada.

COELHO FRITO da D.CÂNDIDA DA PENINHA

 
 

« Por muitos anos foi visita assídua, quase uma peregrinação que se cumpria com alegria e gula, ao último morro da Serra de Sintra antes desta mergulhar no mar, no Cabo da Roca, a Peninha, com a sua capela algo sinistra cheia de ex-votos de cera amarelada pelo passar dos anos e o palácio do Monteiro, o mesmo da Regaleira, que ficou inacabado no início do sec. XX e que acabou vagamente administrado por uma fundação coimbrã, que, diga-se, não parecia ter grande vocação para administração de património.

Estas visitas não eram, no entanto, motivadas por qualquer devoção à Senhora do local ou ao palacete romântico arruinado, mas sim pelo queijo e pela amizade que o tempo e circunstâncias peculiares cimentaram com D. Cândida e o seu marido Silvino, guardas do palacete e residentes nuns casebres no sopé do enorme penhasco de granito encimado pelo palácio, seria talvez mais próprio chamar-lhes eremitas, tal era a dureza da vida que ali se levava, só eles, o vento, o nevoeiro, os cães e o rebanho de cabras, como se o tempo tivesse sido ali misteriosamente suspenso uns séculos antes.

A D. Cândida fazia os melhores queijos que alguma vez comi e, desses tempos bons, dessas conversas, dessa amizade, dessas vidas suspensas, ficaram um sem fim de recordações e histórias, umas contadas, outras vividas, às vezes à volta de um petisco que ali se armava, uns queijos, vinho, uns torresmos, o bom pão da Azóia e, por vezes, um mítico coelho frito, caçado ali na serra pelo Silvino e transformado num sabor único que eu tento emular agora, mais de vinte anos passados sobre a partida do casal, finalmente vencidos pelos anos, pela doença e pela solidão.

Os mitos são cruéis e invencíveis e claro que eu nunca consegui igualar o coelho frito da D. Cândida. Tento fazê-lo agora como ela fazia, e apesar de ficar sempre algo abaixo da recordação, é um prato, ou um petisco muito, mas mesmo muito bom.

 

Ingredientes:

Coelho

Banha

Alhos (uma cabeça)

Louro

Sal e pimenta

Vinho branco

Coentros ou salsa

 

Preparação:

Parta o coelho em pedaços não muito pequenos, salpique apenas com sal e deixe tomar sabor por uma ou duas horas, após o que o frita na banha com lume enérgico, sem qualquer tempero, até que se apresente bem tostado por todos os lados. Junte então os alhos esmagados, louro e pimenta, frite um pouco e molhe com um gole de vinho branco.

A partir de agora, o coelho frito vai decorrendo neste ciclo: um pouco de vinho para desglaçar os caramelos que se formam quando os aquosos se esgotam, mais vinho de novo quando preciso, pouco de cada vez para que o sabor se acentue sempre.

Cerca de quarenta minutos depois (uma hora se for coelho bravo), junte uma última vez o vinho e desta vez, também um punhado de coentros ou salsa, picados. Pessoalmente, gosto mais dos coentros, se bem que D. Cândida usasse quase sempre salsa, que os coentros eram uma raridade na serra, naqueles anos.

Dê mais uma volta rápida e está pronto para ser servido como refeição.

Ou deixe arrefecer e coma frio, como petisco, nos dias seguintes.»

Adraga, uma história com visionários, peixe, mariscos, barões e vinho.

 
 

Tenho a dupla felicidade de, abaixo da minha aldeia, ter a praia da Adraga e o restaurante que lhe captou o nome. Numa tenho “a minha praia” de sempre, no outro encontro portaló sempre aberto para, ancorado e amesendado, navegar pela noite dentro em conversas infinitas. Trinta anos de uma relação que quero que vá até às bodas de ouro.

Ainda me lembro do pai da D. Suzette a comandar o velho barracão, já bem composto, onde o sabor do mar entrava em todos os pratos, acolitados por uns petiscos de ocasião que puxavam à cavaqueira ( sempre considerei o senhor Lourenço e o pai Muxacho - que também começou com a "barraca " onde hoje é a Estalagem -, pioneiros em restaurantes de praia nesta costa, os visionários num tempo em que ainda não havia marketings ).

Lembro as desgraças. Lembro o vendaval de marés que deitou abaixo um terço do restaurante, as cheias que mais tarde lhe levaram “ as ameias”, mas lembro também a determinação, o eterno retorno, revigorado, com a mesma qualidade de sempre. Lembro uma família a trabalhar arduamente todos os dias para serem sempre melhores. Merecidamente, o resultado do seu trabalho é hoje é uma referência incontornável.

Já na terceira geração, com a quarta a despontar, continua a D. Suzette a oficiar e a comandar os tachos que, no caso, são mais grelhas e frigideiras. Não vou comentar ementas nem sabores. Todos já passaram por cá e sabem o que a “casa gasta”. Por isso voltam. Voltam ao peixe de costa do dia, aos percebes, à amêijoa cristã, à sopa de peixe, aos mexilhões da Roca. E houve tempo que a lagosta também era daqui, da Roca, antes das traineiras raparem os fundos ao mar.

Pois bem, é que é que a Adraga tem a ver com vinho ? É outra história deliciosa.

O Barão Bodo Von Bruemmer, hoje com 104 anos, ao diagnosticarem-lhe um cancro há uns bons cinquenta anos, meteu-se em viajante a conhecer mundo. Veio até ao fim do caminho, o ponto mais ocidental da Europa, quando (segundo as suas próprias palavras), batendo com a cabeça num dos velhos postes de cimento a indicar “camionetas”, olha em redor e vê à sua frente uma quinta sem fabrico agrícola, quase abandonada. Decidiu comprá-la, restaura a mansão da quinta ( Quinta de Santa Maria ) e, vendo que não havia meio de morrer, inicia de raiz uma coudelaria, grande paixão da sua mulher. Por lá andou anos e anos a trotar nesse investimento, até perder o entusiasmo que os proventos não alimentavam. Como a doença não havia meio de se decidir, virou-se para o vinho. E virou-se a sério. Com o velho espírito e rigor prussiano. E as Caves de Santa Maria começaram a ser conhecidas, vinhos de produtor, autênticas pérolas que poucos conheciam ou tinham acesso.

Uma das pérolas é o Senhor da Adraga, um branco que casa na perfeição com a fresquidão do mar que encontramos na mesa do restaurante da propriamente dita.

Como o Barão está rijo e recomenda-se ( sei, porque o conheço ) e a D.Suzette está para “lavar e durar”, convido-vos a passarem por cá. E não é preciso virem com pressa. Eles também não têm pressa nenhuma.